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quinta-feira, 29 de março de 2012

O Espelho



Ângela Margarida Torres de Araujo

Era quase seis da tarde na cidadezinha do interior. As ruas molhadas formavam pocinhas d’água nos caminhos mal conservados. Aos poucos a chuva ia cessando e o céu abria-se num véu de estrelas. O tempo, entretanto, permanecia úmido; e o vento suave e frio balançava docemente as rosas do jardim público, fazendo deslizar nas pétalas as gotículas de chuva que beijavam os roseirais.
Possuía a tranquilidade de um sorriso de criança aquela pequena e humilde cidade.
Na pracinha a igreja que servia ao povoado até mesmo de escola. Tão necessitado era o local. Na torre da igrejinha erguia-se uma cruz abençoando todo o povo que ali morava.Junto à igreja encontrava-se a prefeitura – tão pobre quanto precisada – e lá funcionava o posto policial, hospital ou hotel, dependendo das circunstâncias. Duas ruas cortavam a praça e nada mais poder-se-ia acrescentar nessa vila, senão algumas casas feias e velhas e um bar tosco que completavam aquele cenário.
Seu Matias era o dono do bar. Tinha uma mania interessante: colocava às tardinhas à sua porta uma cadeira, e lá, sentado preguiçosamente, com o seu cigarro de palha, esperava seus companheiros, os cantadores da redondeza, para começarem juntos, a sessão. Estava quase na hora. Faziam dali sua “Academia”. Enquanto os aguardava, Matias suspendeu a cabeça após escarrar uma pasta amarela e enfrentou um majestoso espelho que brilhava arrogantemente. Não era um espelho comum. Fazia um contraste toda a sua armação de ouro (talhada por mãos divinas), com paredes sujas e carcomidas pela pobreza do botequim. Ele representava toda a ira e orgulho do velho Matias. Era uma presença real na simples choupana de um pescador. O humilde homem recebeu aquele espelho como herança de uma tia da capital que ele mesmo mal a conheceu. Sua cólera era grande quando ele lembrava que ela o presenteou como se lhe desse uma esmola. Miserável. Ele não precisava daquilo. De que lhe servia um espelho? E ainda... que espelho! Vivia pobre e feliz com a sua mulher. Mas a pestinha da filha... Tinha toda a arrogância da tia, desgraçada. “-O Zé acerta cum ela.” Ele pensava. Agora o orgulho. Ninguém na cidade tinha espelho igual ao dele. Nem mesmo o prefeito. Vivia tão enfatiotado, de gravata borboleta, mas não tinha um espelho daquele! E até mesmo a irmã do padre – tão importante, veio da capital – quando passava por ali, pelo seu boteco, corria para mirar-se. Tão feia! Queria se ver mais bonita. Naturalmente que sim. Pensava ela que, além de belo ele fosse mágico.
-Oi, Matias! Quaji nóis num chega. Tava chuveno tanto!
Sentaram-se todo numa alegria caipira e contagiante e iniciaram a tarefa de sempre. O violão surdo e desafinado gemia ao toque dos dedos preguiçosos do Zeca. Matias se levantava de quando em vez para atender aos poucos fregueses que seu bar freqüentava. Todas as vezes que assim o fazia, procurava o espelho, como se ele lhe avisasse alguma próxima desgraça. Matias cismava consigo: -“Eu ainda lhe vendu. Cum dinhêro arrumarei um buteco mio e cumpr irei o laçu di fita qui a muié viu na cabeça da Sinhá”. Mas as verdes esperanças do Matias estavam secando. Secando... Secando... Sentava-se novamente. No meio daquela folia, um vento forte balançou o botequim.Um tilintar de vidros chamou a atenção da turma que fazia sua costumeira algazarra na porta do velho. Todos levantaram-se de um só pulo. Estarrecidos. O violão deixou-se cair das mãos do Zeca, ecoando surda e tristemente, a nota final de uma canção de amor. No chão, ele pranteava o imponente espelho que se achava partido em pedacinhos. Com os passos lentos e indecisos, Matias aproximou-se dos vidrinhos que, mesmo transformados em pó, pareciam pequenos diamantes ornando o chão. -“Mermu assim é belu! Aqui num era seu lugá. Devia tê ficadu cum aquela bruxa. Na minha casa ele nunca puderia ficá sastisfeitu. Era acustumadu a realçá as grande sala, a sivi de juiz aos formosu rosto dar delicada donzela, dandu a palavra finá. Veio pra cá, pró inteirô, pra vê minha cara e a cara da irmã du padre. Foi a fiura dela qui deu azar. Peste. Ela mi paga! A muié perdeu o laçu di fita. Ma ela num pricisa di ôro pra fica bunita! Num pricisa di laçu! Mais a fia vai chorá, chorá di raiva. Ela si achava tã rica!”.
As lágrimas, todavia, lavavam aquele pedaço de chão enquanto Matias juntava os caquinhos do espelho. As paredes agora pareciam mais sujas e mais feias. Do espelho, só restava o prego, que permanecia resistente e forte, inabalável e indiferente. 34ª reunião da ALV- 28.07.1996.