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segunda-feira, 18 de julho de 2016

VIVA JOÃO UBALDO RIBEIRO E VIVA O POVO BRASILEIRO

Estácio Bahia Guimarães*
João Ubaldo Ribeiro
(.23/01/1941 - 28/07/2014)
Conheci João Ubaldo Ribeiro na minha juventude. Morávamos no mesmo bairro e nos aproximamos através de amigos em comum, entre eles o compositor e poeta Valtinho Queiróz, (autor da música da novela Gabriela) e o poeta Luciano Passos. Nesta época, ele já revelava uma inteligência refinada, e era apontado como um jovem escritor talentoso com um futuro promissor no campo da literatura. Vez por outra nos encontrávamos e nos bate papo demonstrava muita originalidade para contar casos e o fazia com um senso de humor extraordinário, além de utilizar a fértil imaginação para criar situações que enriqueciam sobremaneira o desenrolar da narrativa ou os comentários sobre fatos ou pessoas. Este dom ele conservou por toda a vida, e é impossível alguém falar sobre João Ubaldo sem reconhecê-lo como um talentoso contador de estórias.
Vim me aproximar mais de João Ubaldo, por volta de 1972, quando eu era professor da Escola de Administração da Universidade Católica de Salvador (UCSAL) onde ele também lecionava. Nós fomos indicados para ocupar: eu a Vice-Diretoria Acadêmica e ele a Vice-Diretoria Administrativa e por escassez de espaço, e por sorte minha, nós dividíamos a mesma sala. Dessa convivência estreitamos nossa amizade e aprendi a admirá-lo como escritor, como cronista, como professor, como tradutor e, acima de tudo, como um homem que não abandonava o sorriso, nem deixava nada encobrir o seu bom humor, nem esmaecer o brilho do seu alto astral. Nunca o vi sério, fisionomia tensa, cara aborrecida, gestos nervosos, não... João Ubaldo tinha um sorriso permanente e eu desafio quem tenha uma foto dele onde não apareça com o rosto tranqüilo e sorridente, esbanjando bom humor pra todos os lados.
Certa feita seu pai, o Prof. Manoel Ribeiro, diretor da Faculdade de Direito da UCSAL, chamou-me para conversar a respeito de João Ubaldo. Demonstrou preocupação sobre o futuro do filho que só queria ser escritor. Perguntava-me –“você conhece alguém que seja apenas escritor”? E pedia-me para aconselhá-lo a fazer um concurso público que lhe desse alguma estabilidade, a par das suas atividades literárias. Citava-me exemplos de promotor escritor, médico escritor, embaixador escritor e até de governador escritor. Graças a Deus não procurei aconselhá-lo como desejava seu pai e ainda que o fizesse ele não me atenderia. João Ubaldo Ribeiro nasceu para ser escritor: nasceu escritor, viveu como escritor e morreu como escritor, obediente a sua vocação e escravo do seu talento. 
Ele costumava fazer reflexões sobre o "talento" e a "vocação". Questionava sobre a pessoa que tinha vocação, mas não tinha talento, e sobre a que tinha talento, mas não tinha vocação para se entregar a esta ou aquela atividade. João Ubaldo foi um exemplo perfeito do que veio com talento e atendeu o chamado da vocação. Deus não o deixou capenga, atribuiu-lhe os dois com fartura e ele soube aproveitar essas dádivas divinas. O pai de certa forma tinha razão, pois João Ubaldo afastou-se da vida docente na UFBA e logo depois da UCSAL, afastando-se inclusive da Vice Diretoria da Escola de Administração, para se entregar de corpo e alma à sua verdadeira paixão, obediente aos ensinamentos bíblicos que manda o homem multiplicar o seu talento e ele soube multiplicar o talento que Deus lhe deu, com uma vasta produção literária.
João Ubaldo veio predestinado a marcar a sua passagem por esta vida terrena, com tintas vivas e bem fortes, deixando registrado o seu nome no livro de ouro reservado aos mais seletos escritores da literatura brasileira e até mesmo da universal. Seu nome por inteiro é João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro. Nasceu em 23 de janeiro de 1941, na aprazível Ilha de Itaparica, na Bahia, onde deixou ancorado o seu coração por toda a vida e jamais permitiu que as suas lembranças fugissem de lá. Dos primeiros meses de idade até cerca de onze anos, viveu com sua família em Sergipe, onde o pai, Manoel Ribeiro era professor e político. Tempos depois, já adulto, retornou a Itaparica onde viveu cerca de oito a dez anos produzindo muitas das suas crônicas, inspirando-se em personagens que viviam na Ilha. Assim ele encerrou o seu discurso de ingresso na Academia Brasileira de Letras, em 8 de junho de 1994, onde foi eleito para ocupar a cadeira nº 34 daquele sodalício:
“E, deixo para o fim, por ser a mais importante, a homenagem ao povo de minhas duas terras. Tendo sido criado em Sergipe até os 11 anos, não posso deixar de ser meio sergipano; tendo nascido em Itaparica, sou baiano. Agradeço, abraço e peço a bênção do povo da Bahia e de Sergipe. Imagino que agora, lá na ilha, algum itaparicano levanta um copo em minha lembrança, e, lá em Aracaju, tão doce e amável na minha infância feliz, algum amigo antigo fala em mim com orgulho conterrâneo.” 
Como jornalista foi colaborador em diversos jornais e revistas no país e no exterior. As crônicas de João Ubaldo, publicadas nos jornais, faziam grande sucesso e eu era um seu assíduo leitor. Ele ganhou projeção, popularidade e conquistou uma verdadeira legião de admiradores, que se deleitavam com as suas crônicas inteligentes e bem humoradas. A crônica foi a verdadeira base e ponto de partida para a conquista dos seus milhares de leitores. Ele fala da sua experiência como jornalista na crônica abaixo:
“Como acho que já contei aqui, meu primeiro emprego, aos dezessete anos, foi em jornal, na época em que não havia escola de comunicação e a gente tinha de aprender no tapa. Sobrevivi a esses duros tempos e cheguei a exercer, um par de vezes, uma função que não existia nos organogramas, mas era comum, a de redator de tudo. Ou redator de qualquer coisa, como se preferir. Não tenho grandes saudades dessa condição, que me levou a escrever horóscopos, reclamações de leitores contra a prefeitura, resenhas de livros, explicações sobre como votar nas próximas eleições, discursos (do patrão, é claro) para o Rotary Club, notas para inserir na coluna social, obituários, editoriais e o que mais fosse enviado a minha mesa; e hoje creio que só não redigi bula de remédio, sinto até falta de uma, em meu currículo. O resto eu fiz, de receitas de cozinha (“Receitas do Giuseppe” era o título da coluna; e o Giuseppe, vergonha mate-me, era eu) a manuais do usuário. Devo ter escrito dúzias de artigos, crônicas, editoriais e assemelhados”. (da crônica “Feliz Ano Novo” de João Ubaldo Ribeiro)
Em 1963, aos 21 anos publicou o seu primeiro livro: “Setembro Não Tem Sentido”. Em 1971 veio o segundo livro, "Sargento Getúlio", apontado pelos críticos como um marco do moderno romance brasileiro, levando às comparações com Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. Esta obra foi a que realmente o projetou no mercado editorial. "Sargento Getúlio" foi adaptado ao cinema – recebeu o prêmio Golfinho de Ouro, do Governo do Rio de Janeiro, para o cinema - e consta na maior parte das listas dos cem melhores romances brasileiros do século e lhe rendeu o Prêmio Jabuti de 1972, concedido pela Câmara Brasileira do Livro, na categoria "Revelação de Autor". A história é revestida com a cultura e os costumes do Nordeste brasileiro e, em particular, dos sergipanos. 
“Viva o Povo Brasileiro” foi editado em 1984, e recebeu o Prêmio Jabuti na categoria "Romance". Esta obra virou tema de samba-enredo da “Império da Tijuca” em 1987. João Ubaldo viu o povo brasileiro sair das páginas do seu livro e ganhar a avenida desfilando nas alas da escola de samba, colorindo de ilusão carnavalesca a realidade dos personagens que vivem no enredo da obra. Em 2008, João Ubaldo recebeu o “Prêmio Camões” considerado o mais importante para os escritores da língua portuguesa. 
Em 1999 lançou "A Casa dos Budas Ditosos", narração de uma mulher de 68 anos que experimentou as infinitas possibilidades do sexo. Em 2004 foi adaptado para o teatro por Domingos de Oliveira, em forma de monólogo e encenado por Fernanda Torres. Esta obra causou muita polêmica e chegou a ser duramente questionada.
Além desses, João Ubaldo publicou mais de uma dezena de romances, a exemplo do “O Sorriso do Lagarto”, que foi adaptado para novela na televisão, Rede Globo, em 1991; publicou muitos livros de crônicas, entre eles “Sempre aos Domingos” em 1988; e “Um Brasileiro em Berlim” em 1995. Publicou literatura infanto-juvenil, como a “Vida e Paixão de Pandonar, o Cruel” em 1983.  Os seus romances foram traduzidos para quase todas as línguas: esloveno, alemão, francês, holandês, finlandês, hebraico, sueco e italiano, entre outras. Ele mesmo as traduziu para o inglês Sergeant Getúlio (Sargento Getúlio). E An Invincible Memory (Viva o Povo Brasileiro).
João Ubaldo Ribeiro soube compreender o espírito do povo brasileiro como ninguém. As suas crônicas pendiam para o lado bem humorado, o lado gozador, ainda que tratasse de um tema sério, ele sabia, com muita habilidade, mostrá-lo de forma jocosa. Já alguns de seus romances ficavam nos limites da realidade sofrida que a vida impõe a muitos brasileiros. João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro faleceu, aos 73 anos, no Rio de Janeiro, em decorrência de embolia pulmonar, no dia 18 de julho de 2014. Li um artigo, publicado após o seu falecimento. Não anotei o nome do autor, por isso peço desculpas por não citá-lo, mas vale a pena ser publicado. Assim, eu o tomo por empréstimo para encerrar esta crônica: “Tem gente que abre o riso e o tempo. No meio de tanta bobagem, tanto desgosto, tanto ranço, tanta empáfia, tem gente que faz a vida mais simples em toda a sua complexidade. Obrigado, homem da ilha, baiano da gota. Viver é mais doce e mais bonito porque vira e mexe Deus manda gente como você fazer das suas aqui embaixo”. Você realizou o seu sonho: SER ESCRITOR... Valeu João Ubaldo Ribeiro.

* Membro da Academia Sergipana de Letras; do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe; do Conselho Estadual de Cultura e da Associação Sergipana de Imprensa.