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quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

A Relíquia

De Maria Lígia Madureira Pina

A
Foto Shirley Rocha para o livro A Relíquia
imée, reclinada no sofá, contemplava melancólica, uma lin­da jóia que mantinha dependurada entre os dedos e diante dos olhos. Era uma caçuleta de ouro filigranado ricamente e cravado de minúsculas gemas, pendentes de um belo cordão, não menos tra­balhado. Aimée tocou uma pequena mola, a caixa se abriu e lá estava a outra Aimée, sua antepassada pela linha materna, a quem perten­cera aquela relíquia. Aimée olhou o retrato. Era linda a Vovó, no seu sorriso de Mona Lisa! (quem sabe se inspirara na Gioconda, ao posar para o artista?) A vovó Aimée no seu vestido de renda francesa, o colo nu até quase o nível do seio que no momento lhe pareceu so­bressair num leve suspiro. Mas era a Aimée do sofá quem suspirava.
Aimée estava só. Há um mês morrera-lhe o pai, ainda moço, vítima de um derrame cerebral. E só então Aimée soube que ele esta­va arruinado. Três anos seguidos de infortúnio nos negócios o levara a falência. A própria casa onde residia estava na penhora. Todas as jóias e móveis antigos foram vendidos ou entregues aos credores. Breve te­ria de entregar também a casa. Tinha apenas o prazo legal para ali per­manecer. Aimée era jovem e linda, mas estes dotes não compensavam a inexperiência, a insegurança diante da vida. Antes, era um perigo que uma vantagem. A mãe morrera cedo e o pai, sempre envolto em negócios, a internou em um Colégio religioso de onde acabava de sair, quando se deu o desenlace. A moça estava só e sem saber como andar na vida. Teria de arranjar um emprego. Mas como, Senhor Deus, se nada sabia fazer? Acabava de completar o 2º grau. Ia tentar o vestibu­lar, nem sabia ainda para que. As professoras diziam que ela tendia para a Literatura, mas não tinha certeza. Nunca havia escrito algo que lhe falasse como um bom trabalho literário... Seus olhos se en­chiam de lágrimas e sua alma de dúvidas e anseios. “O que fazer, meu Deus?” Olhou o retrato mais uma vez e a avó pareceu sorrir-lhe no escaninho. E Aimée orou com toda a fé de sua alma. “Vovó, se de onde estás podes me ajudar, ajuda-me, ilumina-me”. E os seus dedos trêmulos acariciavam o retrato... súbito sentiu algo diferente; tocou um minúsculo ponto na parte alta da caixa, junto ao elo que o prendia à corrente. Pressionou-o, automaticamente a caixa se abriu e mostrou uma segunda caixa. E os seus olhos maravilhados encon­traram um pequeno papel amarelado com uma inscrição que ela não sabia ler. E enroladas no papel, duas pedras: um brilhante de pura água e uma esmeralda faiscando ante os seus olhos magnetizados. Aimée conhecia gemas, sempre as tivera ao alcance das mãos. Sabia o valor das pedras. Deveria vendê-las e saldar os compromissos. Mas como? Sair por aí, oferecendo-as? Não; era perigoso. Vestiu-se apres­sadamente e correu para a sua casa. Só então pensara nela; nas irmãs que a criaram e educaram com amor. Procurou a Madre. Contou-lhe toda a situação em que se encontrava. Falou-lhe das pedras. Ela sabia que só o brilhante daria para saldar a hipoteca da casa e a esmeralda renderia o suficiente para mantê-la até encontrar uma solução para sua vida. Mas, vender as pedras da vovó, que as encerrou ali, por dois séculos?...
A Madre era hábil em ler, em decifrar escritas enigmáticas. E conseguiu decifrar a inscrição em números romanos e sinais ideo­gráficos. Ela dizia: “Quem descobrir a mola e achar as pedras só deve fazer uso delas em caso de extrema necessidade. Quem descobrir este segredo encontrará a história desta jóia num pequeno baú de madei­ra de lei que lhe serve de cofre. No fundo dele existe uma pequena mola. Rodando-a de leve para a esquerda se abrirá e nele se encontra a história da minha vida; se souber usá-la estará salva”.
Aimée voltou para casa e seguiu todas as indicações. Encon­trou tudo como fora indicado. Mas no momento só tinha cabeça para pensar em salvar a casa. A Madre aconselhou-a empenhar as pedras. E depois, quem sabe, acharia um meio de resgatá-las... Empenhou-as, resolveu seus problemas e ficou ainda com algum dinheiro para sobreviver um certo tempo...
Um mês depois, sentada no sofá, Aimée contemplava o retrato da avó e se lembrou do manuscrito. Foi buscá-lo e começou a reler, ou melhor, a lê-lo, realmente. Porque na ansiedade em que se encon­trou, nem conseguiu se fixar na leitura. Agora Aimée lia e sua alma se comovia ante a beleza daquele amor irrealizado. Eis a história, como constava no manuscrito:
Eu, Aimée de Soisseaux e d’Argent, nasci na França em 1771, reinado de Luís XV. Meu avô, o duque de Soisseaux, era uma das personalidades da Corte e possuía extensões territoriais es­palhadas pela França. Eu era ainda muito criança quando Luís XV morreu. Sucedeu-lhe o neto, Luís XVI, casado com a ar­quiduquesa da Áustria, Maria Antonieta. Ambos eram muito jovens quando assumiram o reino. A França estava com as fi­nanças abaladas em conseqüência de guerras sucessivas e gastos exorbitantes da Corte, mantidos à custa de pesados impostos pagos exclusivamente pelo 3º Estado. Enquanto estes fatos se su­cediam eu crescia em graça, saúde, vivacidade, beleza e total ignorância da vida. Começa o meu romance e a história desta jóia quando eu completava os meus quinze anos. Meu pai bus­cava um pretendente digno dos nossos títulos para desposar-me. Por isto daria uma grande festa no solar dos Soisseaux. Três me­ses antes convidou um dos grandes pintores da época para fazer o meu retrato; o retrato que iria para a galeria dos Soisseaux. O pintor era jovem e belo. Eu diria ser o próprio Apolo, reencar­nado. Alto, alvo, olhos verdes franjados de longas pestanas escuras, como escura era a basta cabeleira. Lindas mãos de artista: pintor e escultor. Ao vê-lo, apaixonei-me; foi amor relâmpago. Uma chama acendeu-se em meu coração e propagou-se no dele. Ao posar, diariamente, os seus olhos me envolviam suaves e sem uma palavra ele me transmitia mensagens de amor. O cenário para a tela era um belo trecho do nosso jardim, todo florido pela primavera e decorado com fontes e repuxos. Os dias corriam céleres e o nosso amor crescia aceleradamente, a passos mágicos. E um dia explodiu. Ele largou os pincéis e me abriu a sua alma e eu também lhe falei do meu secreto amor. Ali, entre os gerâ­nios, as violetas e as rosas selamos o nosso primeiro beijo. Pouco depois chegava o dia 23 de junho, a data do meu aniversário. E a minha primeira desilusão. Convidei o André para a festa, mas papai não consentiu. Ele era apenas um artista, um assa­lariado, não poderia freqüentar as galas dos Soisseaux. E nesta mesma noite da festa, meu pai encontrou aquele que me impo­ria como marido: o duque d’Argent. Meu coração veio aos pés, minha alma gelou. Foi-me anunciado o compromisso e marca­da a data do noivado. O duque tinha 50 anos (a idade do meu pai) e ficou lisonjeado, feliz em casar-se com uma jovem de 15 anos e de alta linhagem. Ele era viúvo e tinha filhos mais velhos do que eu, poderiam ser meus pretendentes. Não sei até hoje, o que meu pai via naquela união. Penso que tinha alguma dívida para com o duque. Através de minha aia Jeanne marquei um encontro com André. Combinamos fugir. Não sei como, alguém denunciou. Prenderam André, mas ele conseguiu fazer chegar às minhas mãos esta jóia e a carta de despedida que acompanha este relato:

Minha adorada Aimée:
Foram descobertos os nossos planos fui aprisionado e obrigado a sair da França ou morrer. Morto, de nada adiantaria ao nosso amor. Vivo, quem sabe possa encontrar um meio de reencontrá-la, de reconduzi-la aos meus braços? Estou indo para a Espanha; de lá, mandar-lhe-ei notícias através da minha ama Julie. Protele o quanto puder a data do casamento. Breve virei buscá-la, ainda que me custe a vida, porque ela nada vale sem você.
Segue esta jóia. É a única que possuo e pertenceu à minha mãe. Agora é sua. Nela está a miniatura do seu retrato; calcando a mola oculta sob o pingente descobre-se uma concha onde estão um brilhante e uma esmeralda. Vendidos, darão dinheiro sufi­ciente para a nossa fuga.
                                                                          Amo-te e beijo-te
                                                                                   André
Passei a alimentar-me mal. Quase não comia. As minhas car­nes e o rosado das minhas faces foram sumindo. Meu pai preocu­pava-se, mas não desistia do casamento. Nem ele, nem o duque. Minha mãe sofria comigo, mas não tinha voz na casa, não podia me defender.
Estávamos em janeiro. O casamento foi marcado para junho, seria no dia do meu aniversário, 23 de junho, solstício de verão. Aque­la data era fatal para mim. Já estávamos há 20 de junho e nenhuma notícia do André. À noite, porém, Jeanne entrou, sorrateira, no meu quarto e cerrou as cortinas. Sentou-se na cama, onde eu me estendia insone e sem uma palavra colocou na minha mão um papel:

Minha adorada Aimée
Estou cumprindo a minha promessa. Já arranjei tudo. Trabalho para a Corte da Espanha. Tenho ganho um bom dinheiro e a nossa casa nos aguarda. Amanhã, às 11 horas da noite, estarei esperando-a no bosque das violetas. Nada traga para não des­pertar suspeitas. Quando cruzarmos a fronteira teremos tudo que precisarmos. Espero recebê-1a nos meus braços e matar esta saudade que me crucia. Seremos felizes.
Beijos de André

No dia seguinte não saí do quarto. Queixei-me de dor de cabeça e insônia o que era verdadeiro, diante da expectativa. O médico foi chamado. Receitou algumas poções e recomendou repouso. Ansiosa eu aguardava a noite, que para mim nunca chegaria. Finalmente, às 10 horas e quarenta minutos embucei-me e saí, cautelosamente, pela porta dos fundos. Jeanne da janela do seu quarto vigiava. Andei uns 10 minutos e me encontrei nos braços de André. Que felicidade!... Mas só conseguimos andar alguns passos. Ouvimos um sinal de alarme, os cães começaram a ladrar. Soou um estampido e André caiu por terra, fulminado. Lancei-me desesperada sobre o seu corpo sem vida e dali fui arrancada à força pelo meu pai. No sei para onde levaram o corpo de André. Caí em depressão; o casamento foi adiado e eu fui mandada para a Suíça, para a região dos lagos. Eu não queria viver, mas o des­tino teimava em conservar vivo o meu corpo embora a minha alma estivesse morta. Nessa época, sem que eu entendesse o porquê, meu pai vendeu os seus bens e veio para a Suíça e daí fomos para a Áustria. Soube quase um ano depois. Rebentou, na França, a Revolução de 1789 e os nobres foram dizimados. Papai previra a revolta e escapara a tempo. Charles, o Duque d’Argent, morreu e sua família emigrou para a Áustria. Meu pai não havia esquecido o compromisso do ca­samento. Eu estava com 24 anos, quando Charles, o filho mais velho do Duque d’Argent, encontrou-se com meu pai, em Viena. E o meu pai tratou de casar-me com ele. O casamento realizou-se em junho de 1793. Não amei Charles, mas nos respeitávamos muito e mantivemos uma grande amizade, em todos os momentos das nossas vidas. No ano seguinte mudamo-nos para a Espanha, onde nasceram os nossos quatro filhos: Charles, Paul, Andréa e Dinah.
À minha filha Andréa dei como presente de 15 anos, a jóia que recebi de André, com a promessa de que a conservaria e a transmitiria à sua primeira filha. A herança seria sempre pela linha feminina.
Aimée, a do retrato, morreu ao dar a luz o seu último filho: Pierre. Andréa, sua filha, doou o medalhão à sua filha Dianne ao fe­char o século XVIII – 1800. Dianne a deu a Marie, em 1820, que o doou a Deborah em 1840 (ano em que a família Soisseaux – d’Argent já se encontrava no Brasil). Em 1860, Júlia tomou posse da relíquia e a transferiu para Lúcia em 1875. Em 1910 passou para a segunda Aimée, neta de Lúcia, porque esta só tivera filhos varões. De Aimée a recebeu Carmem em 1915, ano em que nasceu, porque a avó já não podia esperar os 15 anos da neta. Tinha um compromisso no além. Em 1950, Carmem a entregou a Laura que a entregou em 1955 a mim, a terceira Aimée, quando fiz 15 anos.
Lendo a história da vovó Aimée resolvi testar os meus dotes li­terários. No prazo de três meses escrevi um romance, contando a vida dos Soisscaux – d’Argent. Para isto consultei todos os documentos sobre a nossa genealogia. Levei os originais à Editora Luz. O roman­ce foi aceito, publicado e se tornou um “best-seller”. Ganhei muito dinheiro e pude, no prazo exato, resgatar as pedras e recolocá-las no escaninho. Casei-me em 1957 com Ari Tucanã, um meio índio, fato que faria estremecer no túmulo os ossos dos Soisseaux – d’Argent. À minha filha, a quarta Aimée, faço hoje, a doação da relíquia. Quem sabe, precisará, um dia, recorrer às pedras, símbolo do amor de Ai­mée e André? Se isto acontecer é só seguir a dica da Vovó: “Se souber usar, estará salva”. Do livro "A Relíquia, contos e crônicas".
zzz