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terça-feira, 9 de junho de 2020

MULHER SERGIPANA NA LITERATURA 5 : CARLOTA SALLES DE CAMPOS

Sandra Natividade*

Mulher Sergipana na Literatura contempla nesta publicação a professora, poetisa e ensaísta Carlota Salles de Campos. Não nos consta que tivesse graduação universitária, mas pelo muito que fez revelou-se autodidata afeita à educação e às artes. Filha de Bemvindo Salles de Campos e d. Emília Leopoldina Freire Salles de Campos nasceu em 18 de novembro de 1884, na Praça da Bandeira, então, conhecida Praça da Catinga, em Aracaju. Carlota era a primogênita de uma prole de dezoito filhos do casal Salles de Campos. A Escola Normal de Aracaju onde terminou o curso de professora com láurea, foi sua faculdade, valendo a nomeação de professora Adjunta em Aracaju/SE. Depois, seguiu-se nova nomeação designando-a professora Titular na escola pública isolada do Calumby, no atual município de Nossa Senhora do Socorro/SE.
A vida como docente lhe sorria, quando lhe aconteceu verdadeira itinerância: o presidente do Estado a nomeou para ensinar no então povoado de Barra dos Coqueiros, posteriormente, transferida para o povoado Telha (Anipum), em Aracaju e depois designada para a Vila de Itaporanga/SE. Com sua experiência e pretendendo conhecer outras plagas, solicitou ao estado disponibilidade e viajou com destino a Recife/PE, passando a lecionar no Colégio Americano Batista e o fez por dois anos até mudar-se para a cidade baiana de Jaguaquara, onde lecionou no Colégio Batista Taylor-Egídio. Carlota prestou serviço evangélico, lecionando nas cidades de Barracão, Nazaré, Santo Antônio de Jesus, Lages, Barra do Rocha, Mutum, Areias, Rio Largo, Jequié, Mundo Novo, Feira de Santana e, finalmente na capital Salvador, permanecendo até o advento da Revolução de 1930 lecionando à época nos cursos primário e elementar na Escola de Comércio Estadual da Bahia.
A experiente professora retornou a Sergipe, entretanto não chegou à capital, sobre esse fato seu sobrinho escreveu (CAMPOS, Bemvindo Neto, Centenário de Nascimento da Professora e Poetisa Carlota Salles de Campos, 1984, Crônica):

“... ficou na cidade de Estância, onde fundou o Colégio “Frei José de Santa Cecília”, estabelecimento escolar modelo que teve a honra de ser visitado pelo respeitado mestre, professor José de Alencar Cardoso -  o professor Zezinho - o qual, em viagem de inspeção escolar, teceu os maiores elogios pelos métodos pedagógicos modernos adotados pela jovem professora. ”
Bemvindo Salles de Campos Neto
Jornalista e escritor

Mas a irrequieta profissional resolveu dar baixa no colégio de Estância voltando definitivamente para a capital, Aracaju, aqui chegando solicitou reversão ao magistério público, ato contínuo designada para ensinar na cidade de Aquidabã/SE, onde passou uma experiênciasui generis, certa ocasião foi obrigada por vários dias a “dormir no mato” na companhia de várias famílias aquidabanenses fugindo do bando de Lampião. Carlota ainda lecionou em Frei Paulo, Maruim, Santo Amaro das Brotas e Aracaju. Para não se distanciar do amor pelo fazer educacional idealizou e fundou um colégio na capital. Sobre essa instituição uma ex-aluna escreveu (PINA, Maria Lígia.  A Mulher na História, 1994, p. 225):

“...fundou o seu próprio colégio, na Avenida João Ribeiro, no Bairro Santo Antônio. Do Colégio Frei José Santa Cecília, eu mesma posso dar testemunho porque fui sua aluna. Por d. Carlota fui alfabetizada pelo método de orações, hoje considerado moderno. D. Carlota não se limitava a ensinar as lições trazidas nos livros. Além de explorar os textos livrescos ela nos ensinava hinos patrióticos e levava a público peças dramáticas e comédias com grande sucesso. Participei do drama A Madrasta, levado à cena no Teatro Rio Branco, que mereceu o elogio da crítica da época.”
Maria Ligia Pina
Professora, membro da Academia Sergipana de Letras
 e fundadora da Academia Literária de Vida

Bem assevera a ex-aluna que Carlota não se limitou ao conteúdo dos livros; inteligente, sua mente a levava muito além, tinha livre trânsito aonde chegava. Classifico a profissional como uma docente audaz, ela não se limitava aos programas, entendia que seus alunos mereciam enxergar globalmente, incentivando-os a crescer no conhecimento para a vida, e assim preparava peças, jograis etc. Era d. Carlotinha exímia pianista, aproveitava seu dom ministrando também aulas de canto aos discentes, tendo esses como figurantes das produções que realizava, levando-os a mostrar o talento de cada um. Quando estava em Aracaju as apresentações ocorriam no Cine Teatro Rio Branco, cujo proprietário era Juca Barreto e, na cidade de Estância as peças ocorriam no Cine São João, na época do proprietário Diógenes Costa. Antes das apresentações, roteiro minuciosamente organizado, o figurino dos atores confeccionados de papel crepom, recebiam os últimos retoques, chegavam os músicos da rebeca, vilão e cavaquinho, todos amigos das famílias envolvidas, que acompanhavam alegremente o grupo da professora Carlota, tocando sem cobrar qualquer ônus e a festa acontecia nas salas de projeções.
 Nos municípios mais distantes, apresentações lúdicas aconteciam nos próprios grupos escolares. Mas o simpático de tudo é que a hábil professora sozinha na capital ou interior, onde estivesse tinha um coração que extrapolava os limites da necessidade de cada um dos alunos, ultrapassando o perfeitamente aceitável, investindo no alunado além de suas forças. Sua essência holística contemplava as necessidades sociais dos alunos e a comunidade sem a preocupação de estar naquele lugar por pouco ou muito tempo, o importante era realizar mais uma vez em prol dos assistidos. Nas apresentações em casas de espetáculos cobravam-se ingresso, o resultado apurado sempre, mas sempre, revertido para a caixinha da escola, oferta as igrejas, orfanatos ou asilos, assim se concretizava o fazer da mulher que instruiu gerações, incutindo no alunado ações em favor do próximo, visando uma sociedade mais humana e justa.
Carlota continuou preparando alunos para os exames de admissão ao ginasial, mantendo cursos regulares nas Ruas do Carmo, Lagarto e de Laranjeiras. em Aracaju, envolvendo alunos da rede pública ou particular onde prestou serviços. Também lecionou como voluntária pela Liga Sergipense Contra o Analfabetismo em várias escolas. Na época que laborou a Liga estava sob a liderança estadual do Almirante Amintas José Jorge, chancelada pela Maçonaria; o almirante Amintas Jorge coordenou a Liga de 1917 a 1939 criando nesse período presumivelmente, 38 escolas de alfabetização em Sergipe. Mesmo depois de aposentada com mais de quarenta anos de profícuo labor, a bem prendada professora, ilustre pianista, atendendo frequentes solicitações, se prontificou ministrando aulas particulares de piano em sua residência na Rua Laranjeiras.
 Considerada pelos concidadãos como mulher forte e mística a professora Carlota, evangélica, comprometida com a doutrina Batista participou ativamente da Primeira e Segunda Igreja Batista de Aracaju: na Primeira Igreja Batista, participou compromissadamente da Sociedade de Senhoras e Moças daquela instituição e de eventos lítero-musicais, declamando edificantes poesias ao lado de outros baluartes na evangelização, a exemplo de Maria do Carmo Almeida Moraes (Carmosita Moraes), Rute Amaral, Lourdes Caridade e Elza Seehagen Freitas. Obstinada, os anos já percorridos não lhe fizeram parar, portanto seguia, a bondosa mestra na sua vocação de instruir, edificando sua admirável história, ofertando ao público leitor maravilhosas poesias e ricos sonetos.
A produção literária mostrava que o amor a Cristo estava arraigado em todo o seu fazer. Os versos que produzia eram publicados em jornais e revistas do seu tempo, notadamente nos estados onde trabalhou: Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, aqui a grande maioria de seus escritos foram publicados no Almanaque de Sergipe, de Elias Montalvão. Carlota contribuiu com a literatura sergipana através das suas obras: Torturejos, 1912 (poesia) e Colméia de Rosas, 1924 (poesia e prosa). Torturejos recebeu prefácio do filólogo e jurista Prado Sampaio, autor do ensaio “Sergipe Artístico, Literário e Científico”, ele genitor da escritora Flora do Prado Maia a primeira sergipana a escrever Romance; guardadas as devidas proporções entende-se haver contemporaneidade entre o fazer e realizar das intelectuais Flora e Carlota.
As obras qualificadas da professora Carlotinha, como afavelmente chamavam-na, granjeou espaço privilegiado na literatura sergipana, esse fato levou Armindo Guaraná a incluir o nome da literata no seu famoso e importante Dicionário Biobibliográfico Sergipano. Indiscutivelmente a reconhecida educadora deu parte de sua vida à educação em Sergipe. A partir de seu Estado natal, incansável projetou-se a outras plagas: realizando com grandeza a arte de ensinar, preparando os alunos para enfrentar a vida que ela conhecia muito bem. No ocaso dos seus dias muitas surpresas a circundaram, passando a extravasar cada vez mais através da escrita, recriou-se com a alma poética fato que lhe notabilizou refletindo na boa aceitação de suas obras pela crítica que dedicou merecidos elogios, vejamos:
“Li com enthusiasmo os seus versos ora delicados como a sensitiva e ora simples como os flavos e níveos malmequeres que nascem, vicejam e fenecem ao longo das nossas poéticas campinas.Gostei muito de sua poesia “O Colibry”. Acho, posto que falte a competência para julgar, impecáveis os seguintes versos que formam a primeira quadra:

                                     Tarde gentil de meiga primavera,
Vae o sol em caminho do ocidente,
Voltam as aves ao ninho revoando,
As brisas resfolegam brandamente.

Julgo igualmente impecável, de uma simplicidade encantadora, a seguinte quadra do soneto – “AURORA”:

    É belo ver surgir, leda e brilhante
   A encantadora e clara luz do dia;
É belo ver alegres passarinhos
       Trinando doces notas de harmonia.

Terminando, peço-lhe que não abandone a rota que já traçou na senda do Parnasso.”


Epiphanio da Fonseca Dória,
Em sua Coluna Gabinete de Letras
18 abril 1912

     Sobre o livro Torturejos, conhecido conterrâneo se expressou em (Reprodução em Variações em Fá Sustenido, Gazeta de Sergipe, publicado em 08/abril/1979):

“... veio como uma ambrosia divina refrigerar-se a alma embalar-me os seus versos cujos rithmos têm as vezes a semelhança de uma sonata arrancada da harpa de Paganini”.

                                                Zózimo Lima
                                           Jornalista e escritor
                                               Santos, São Paulo, 1913


     As publicações de d. Carlotinha receberam da crítica manifestações importantes, como exemplo outro membro da imprensa, atuante nos anos 1920/1930, fez constar esse material no Almanaque de Elias Montalvão sobre a beleza do livro de poesias “Colmeia de Rosas”:

“Carlota Salles de Campos é uma brilhante inteligência, não sendo mais uma manhã a alvorecer para a vida das letras, ela já cintila altaneira no céu da poesia do Brasil. Rendendo-se à jovem e fulgurante arquiteta de Colmeia de Rosas, as nossas mais vivas homenagens, temos assim cumprido o nosso dever. ”
(...)
“Há expressões cheias de vida e de sentimento, com uma delicada tepidez de ninho; às vezes versos arrogntes, com um entusiasmo brilhante, demonstrando assim a intelectual conterrânea, que o seu espírito de escol não só sabe sentir as impressões que vêm n’alma cheias de doçura, assim como as vibrações passionais e virulentas. São versos sãos, perfeitos, moldados na escola clássica da poesia moderna. ”

                                                Arlindo de Moura Pinho
                                                       Jornalista

A professora e escritora Carlota Salles, d. Carlotinha, viveu intensamente transmitindo com excelência ensino de qualidade, adequado ao alunado como cristã evangélica dedicou-se ao estudo da palavra de Deus, escrevendo admiráveis poesias em Sergipe. De sua autoria, O Que Eu Amo.

O QUE EU AMO

                                              Carlota Salles

Eu amo a aurora mimosa
Quando surge o Oriente;
A manhã primorosa
Aos raios de um sol fulgente.

Amo as virentes campinas
Do rócio aljorofadas;
Amo as silvestres boninas
Que cheiram pelas estradas.

Eu amo a noite formosa
Sob um lindo firmamento,
Quando a lua majestosa
Faz seu giro sonolento.

Eu amo a flauta dolente
Nas noites enluaradas,
Soltando notas plangentes,
Tristonhas notas magoadas.
(...)
Pela incursão através da pesquisa aqui e alhures percebe-se seu ir e vir com precisão cirúrgica, a docente tinha objetivos claros, viajou para servir a muitos, em Sergipe o espaço se afunilou ela precisava ser várias para atender as múltiplas necessidades da educação pública. Não teve muito tempo para pensar em si somente, mas pensar no coletivo, em vidas as quais tinha clara responsabilidade em educar e instruir contribuindo com o futuro de uma geração, foi o que fez com eficácia.
Pelo merecido reconhecimento ao trabalho educacional e literário da fiel docente seu nome tem sido lembrado como alguém que realizou além do estabelecido. Usufruiu como poucos, plena longevidade; pensou na vida visualizando a brisa no horizonte que ainda prometia, assim não se acomodou enfrentou as limitações próprias da idade e enquanto mente e pernas a mantiveram d. Carlotinha andou disseminando conhecimentos instrutivos no campo da literatura, como também proclamando seu testemunho ao evangelho de Cristo utilizando como canal suas preciosíssimas poesias. Solteira, sem filhos, faleceu professora Carlota na cidade de Aracaju, em 22 de fevereiro de 1971.
 Em 1992, com a fundação do segundo Sodalício das Letras no Estado de Sergipe, a Academia Literária de Vida - ALV, presidida pela saudosa intelectual sergipana Maria Lígia Madureira Pina; o nome da professora Carlota Salles de Campos recebeu homenagem, passando a integrar a galeria das patronas da novel Academia, Cadeira nº 8, providencialmente ocupada por outra docente da rede pública de ensino, professora Maria Inácia dos Santos Dória. Ao longo de aproximados 28 anos, a ALV desde 2014 presidida pela jornalista Shirley Rocha, continua cumprindo o papel para o qual foi criada de contribuir na qualidade, valorização, defesa e avanço da literatura sergipana, primando o sodalício por encontros mensais entre as acadêmicas, sinal emblemático que dignifica cordialidade e interação. 07/maio/2020


*Sandra Natividade
Jornalista, Membro da Academia Literária de Vida- ALV - Cadeira º 12 e
 da Academia de Letras de Aracaju- ALA- Cadeira nº 19.