Comentário sobre o livro da Professora e Pesquisadora Maria Lúcia Marques Cruz e Silva “Retalhos de Infância” (1955 - 1961)
Maria Inácia dos S. Dória*
“A infância é a época das grandes descobertas, das grandes aventuras para o conhecimento do mundo. Nesse caminho de percepção cada vez mais acentuada, parecemos sempre necessitar de algo mais...”.
(Carlos Drummond de Andrade)
Lúcia Marques |
Professora, bióloga, pesquisadora em História pela Universidade Tiradentes, nasceu na cidade de Maruim - Sergipe, localizada na região do Vale do Cotinguiba e desde cedo foi motivada pelo pai o professor Sr. Adalberto Cruz, a olhar a terra natal com os olhos da alma de uma menina curiosa e inquieta, afeita a grandes desafios.
No livro “Retalhos de Infância” em forma de cordel em versos, Maria Lúcia retrata a sua infância entre os cinco e onze anos de idade de maneira sentimental e fraternal, organizados, bem divididos em capítulos ilustrados por fotografias, numa linguagem simples e interiorizada: 1- Com os olhos da Fé, 2- Presença Materna, 3- Pai e Professor, 4 - Temor da Morte, 5- Hora de Brincar, 6- Fatos e Figuras, 7- Educação Religiosa, 8- Na Escola, 9- Maruim - SE: Terra - Mãe, 10- Notas e Notícias, 11- Cotidiano.
Lendo o livro “Retalhos de Infância” da profa. Maria Lúcia Marques, várias vezes eu me reencontrei com os bons momentos vividos na cidade natal de Maruim, berço da nossa infância querida. Trata-se de uma obra contada com o coração transbordando de alegria e emoção, na memória criativa de um aprendizado único: FÉ - AMOR - AMIZADE - FRATERNIDADE.
O amor incondicional de amar os seus filhos, a presença materna de D. Júlia, constante no dia a dia e do seu pai foram marcantes na vida da pequena Lúcia.O seu pai homem simples e de fé com seu vozeirão, caminhava todos os dias, a passos largos, pelas ruas do Assovio e da Cancela em direção à sua barbearia. Ainda me lembro quando voltava do trabalho no final de tarde, trazia sempre um jornal debaixo do braço e falava das histórias de “Maroim” com muito entusiasmo. Era apaixonado pelo torrão natal. Muito cedo Lúcia conheceu MARQUÊS, DUQUE E MAJESTADE, a coleção de cédulas de cruzeiros, (moeda da época) sua primeira lição, que aprendeu com o pai, sem saber que estudava alguns vultos da Nação.
A professora Lúcia Marques destaca no livro o grande amor pela cidade, as lembranças que guarda do “Grupo Escolar Padre Dantas”, onde estudou e impressiona o leitor pela riqueza de detalhes, quando se exigia, sob o olhar da diretora, o Hino Pátrio que se cantava, na entrada e na saída das aulas. O Hino Nacional, o Hino à Bandeira, muitas lições de civismo e patriotismo em honra do nosso Brasil. Professores exemplares a ajudaram na sua formação, por uma boa educação. A música “Cantar para Viver” de Villa Lobos, lembra o eco do sininho do Grupo Escolar Padre Dantas. Diariamente as crianças formavam filas para cantar, antes de adentrarem à sala de aula.
O Rio Ganhamoroba que abraça a cidade também tem o seu valor, fonte de renda dos ribeirinhos, rio amado por todos - é consagrado, tem um profundo ar de encantamento que ficou na memória, na lembrança e na alma com um renovado sentimento de saudade. Isso tudo nos remete ao poema clássico de Casimiro de Abreu “Meus oito anos” (1839 - 1860).
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!(...)
Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!(...)
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
(Lisboa, 1857)
Relendo “Retalhos de Infância” de Lúcia Marques com o registro de sua memória criativa, as lembranças vão além das brincadeiras e dos sonhos infantis. Alguns versos são marcados pela dor e pelo sofrimento, como o temor da morte, o cemitério, as doenças, o enterro das crianças, as rezas e crendices, o curandeirismo, o infortúnio, a dor que deveras sente. Uma película do filme “Nordeste Sangrento” (1961) de Wilson Silva, tem destaque no seu livro com filmagens pelas ruas de Maruim.
Uma doce lembrança são os doces de D. Marcela, os pirulitos, os bicose, os cachimbos de D. Anita, feitos à mão com muito carinho para a garotada da rua do Assovio. Naquela época as bodegas eram muito frequentadas pela vizinhança e por moradores da região. A bodega do Sr. Hildebrando ficou na sua lembrança. Aos sábados o troco da feira tinha destino certo: os livrinhos de cordel faziam parte da sua leitura diária. O seu berço de jacarandá virou peça de museu e pertenceu ao conterrâneo Zacarias (1923 - 2011) ex. combatente da Segunda Guerra Mundial, da Força Expedicionária Brasileira (FEB) que recebeu a medalha “Sangue do Brasil” pelo seu heroísmo e atos de bravura.
Revivi belíssimos momentos ao relembrar da Primeira Comunhão e do Catecismo, aos domingos na Igreja de Nossa Senhora Boa Hora, sob a coordenação de Antônia Vieira Dantas (Dona Totonha). No “Linho” caprichava nos bordados e no ponto de cruz, ao lado de Inês sua secretária e das meninas prendadas com aptidão para o linho. No final do ano tinha uma bonita exposição de todos os trabalhos. O catecismo era bem organizado, além dos textos sagrados, havia no Natal a apresentação do Pastoril com dois cordões: o Encarnado e o Azul, que disputavam as mais belas pastorinhas com o pandeirinho nas mãos e muita alegria rumo a Belém, a maior inspiração.
Na Festa da Cruz de Bela
Ao lado da Santa Cruz
Um anjinho sentado agradecia
Todo dinheiro doado em forma de devoção.
Boas recordações da Festa da Cruz de Bela, em homenagem a “Menina Bela”, realizada em novembro com o parquinho de diversões, quermesses, as barracas enfeitadas, as cestinhas de confeitos para as crianças, algodão doce, rolete de cana, muitas guloseimas, parecia uma feirinha de Natal.
Como é bom ser criança! Suas primeiras lembranças de infância vão além das brincadeiras com as bonecas, as roupinhas das bonecas era uma festa (batizado ou aniversário), brincar de casinha, as panelinhas de barro, as comidinhas gostosas com a colaboração de D. Júlia aos sábados, as brincadeiras na calçada todas as tardes, pular de corda, macacão, cabra-cega, peteca, além de pintalainha ela brincava com os gafanhotos e alguns insetos.
Revendo as cantigas de roda com as crianças de mãos dadas, as canções eram embaladas com muita alegria, na porta de casa com as amiguinhas vizinhas (Inácia/ Arlete - Nazaré, Luiza e Ritinha) e na escola com as coleguinhas na hora do recreio com as cantigas: Ciranda Cirandinha, Atirei o Pau no Gato, A Linda Rosa Juvenil, Carneirinho Carneirão, Quá, Quá, Quá Minha Machadinha, A Carrocinha Pegou, Areia de Maruim e outras mais.
Em 2005, a profa. Lúcia Marques nos brindou com o livreto “Imagens da Minha Terra” em forma de cordel em versos, retratando a história de sua cidade Natal nos 151 anos de Emancipação Política de Maruim. Eis alguns versos que demonstram o seu verdadeiro amor pela cidade.
Eu nasci em Maruim
Um lugarzinho afamado
Do Estado de Sergipe
No Nordeste encravado
Seu passado glorioso
Sempre tem nos orgulhado(...)
Quando entro em Maruim
Uma emoção se revela
De um lado a Boa Hora
E do outro a Cruz de Bela
Recebo abraço das ruas
Do Assobio e Cancela(...)
Terra querida eu queria
Dizer o quanto te amo
Nessa singela homenagem
Dos 151 anos
A lição foi do meu pai
Por isso te abraçamos (...)
Chegou o Natal,quanta emoção! Era uma festa esperada com muita ansiedade, o parquinho de diversão, os lindos presépios de D. Umbelina pareciam um pedacinho do céu, a contemplação ao Menino Jesus era um encanto. Dona “Bilina” era uma artista tinha mãos de fada, tocavam piano, faziam os estandartes e teciam os paramentos para a igreja com linhas de ouro. O presépio era muito visitado pelos maruinenses, durante o período natalino e a Missa do Galo com sua mãe D. Júlia tinha hora marcada na Igreja da Matriz: Momento de “Alegria” e Celebração do Nascimento do “Menino Jesus”, enchendo nossos corações de esperança e amor.
O livro“Retalhos de Infância” da profa. Lúcia Marques, também retrata com muita doçura e muita candura a minha infância vivida na cidade Natal de Maruim/SE, berço da nossa infância querida. São versos primorosos, cheios de lembranças, com jeito de colo de vó, que acolhem a criança que existe dentro de todos nós.
Que Deus a abençoe na caminhada produtiva das letras, da poesia, da memória e do saber. Ela dedica este livro para a pequena Marina sua neta, com muito amor, ternura e emoção na esperança profunda por um mundo melhor.
Abraço fraterno.
* Maria Inácia dos S. Dória (Arlete) – amiga/irmã de infância e do coração.Professora, pesquisadora, membro da Academia Literária de Vida, cadeira n. 08 - Patrona Carlota Salles de Campos.