As reuniões da Academia Literária
de Vida proporcionam às acadêmicas e visitantes momentos de muito prazer. Neles
os assuntos são tratados com seriedade, enlevo e muita alegria, se for o caso.
Vamos dar conhecimento de um desses momentos. Em uma das reuniões a professora
e acadêmica Maria da Conceição Ouro Reis colocou na pauta, um recorte de
revista com uma crônica do escritor Artur da Távola e depois nos contou uma
estória. Vamos primeiro ao texto:
“Revista Fatos e Fotos, Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 1984 - n.
1.170 - Crs1.000,00”
Uma manga
pelo amor de Deus!
Artur da Távola
Será pecado gostar de fruta?
Parece. Nada é mais difícil hoje em dia que comer uma fruta saborosa no Rio de
Janeiro. Dentre as perdas contemporâneas de vida, esta é uma que passa
despercebida, ninguém reclama, há mazelas tão mais graves! Mas, para quem gosta
de frutas, come-las hoje em dia é uma frustração constante. Podres, verdes,
amadurecidas à força, caríssimas, elas atestam, infelizes (pois impedidas de
exercer sua vocação de servir e enlevar), a queda brutal na qualidade de vida.
Tomemos a manga. Essa suculenta,
a mais afrodisíaca e tropical, bela no cheiro, na cor, farta, generosa, cheia
de suco e oferenda, fruta com a qual, ao comer entra-se em relação sensual de
beijo, cheiro e lambuzar, a manga ou custa quase quatro mil cruzeiros a unidade
ou é verde por fora e aguada ou podre por dentro. Colhidas verdes, guardadas m
caixas, apodrecem antes de amadurecer.
Depois de quarenta anos não se
pode perder a oportunidade de comer manga! A morte pode chegar e a felicidade
de um homem mede-se também pela quantidade e variedade de manga que comeu em vida. Prestamos
contas no céu pelas mangas que deixamos de comer, pelas quais se passou
indiferente ou ficou com medo de se sujar ou restar com fiapos nos dentes. A
natureza não perdoa essa atitude restritiva de não querer mergulhar no suco
erótico de uma manga, morder-lhe o cangote e o imo, sugar-lhe o amoroso mel que
lhe envolve a semente, oferta de amor e floral e frutal que lhe liberta o tônus
e a procriação.
A manga é como outras frutas
colegas suas, uma hipersensível: ela não tolera a sociedade industrial e suas
leis implacáveis-caixotes, frigoríficos, colheitas antes da hora, silagem,
expedientes de mercado, que só se justificam em termos econômicos, como se
fosse só economia. São frutas contestadoras. Elas negam a civilização do
frigorífico. Ofendem-se, encruam, preferem morrer jovens a aviltarem-se em
temperaturas feitas para conservar cadáveres bovinos, não seres vegetais e
leves, suaves ofertas de maravilha e vida, sumo, odor e frutose, saúde, sais
minerais, beleza, cor, odor, mel satisfação.
Um ser assim, delicado e frio,
como a manga, não se submete a geladeiras brutais, a caixotes jogados em
caminhões movimentados por homens aos gritos, para, afinal, ficar exposta à
poeira, manipulação, fumaceira e barulho à porta das mercearias exploradoras. Ah,
ser vendida! O quanto antes isso ofende às frutas! Por natureza, são dádivas,
ofertas, profusão, gratuidade, presença viva de Deus. Pobre não come nem fruta,
que nasce simples, logo ali, como alguém, numa manjedoura.
O Rio de Janeiro poderia ser
coberto por mangueiras. Já foi. As mangas cairiam nas ruas. Vetustos cidadãos
do Leme subiriam nas árvores para colher a melhor manga para o neto ou a filha
enferma. O argumento é de que suja. Ora, se mangueira ou pitangueira suja mais
que o cano de descarga dos ônibus da CTC...
Uma tola idéia de limpeza tirou
do Rio as árvores frutíferas. Ninguém pensa em repô-las, salvo o cronista,
nostálgico de comer pelo menos uma manga decente, em todo este verão e, quando
morrer pedir licença no céu para comer mangas no verão.
Mas eu falava do pudor de certas
frutas de serem industrializadas. É que não nasceram para isso. As mangas,
morangos, o sapoti, a jabuticaba, as amoras, o abio são seres complexos,
poéticos, introvertidos, tímidos. Não vieram ao mundo para serem encaixotadas
desde verdes, semanas a fio, até serem consumidos. Nasceram para serem comidos
no pé ou perto do momento da colheita. Rejeitam a frigorificação e o estoque.
Nada têm com a sociedade de consumo. São diferentes das bananas, laranjas, abacates,
peras, maças e abacaxis, estas sim, frutas com outra estrutura psicossomática,
duras na queda, aptas à sociedade industrial a qual já aparecem destinadas por
Deus, que lhes deu casca, conformismo e resistência. Mesmo assim, nada é mais
raro que uma laranja doce, idem um abacaxi, já que pêra e maça custam-nos os
olhos da cara. Resta a banana, esta santa, que já vem embrulhada pela natureza
e sabe amadurecer sozinha, fora do pé.
As frutas sensíveis, porém, são
tratadas com brutalidade. E como a sociedade de consumo é visual, trata-se de
fazê-las belas ou coloridas. Deixam, então, aquelas mangas enormes colorirem-se
de róseo. Por dentro, podridão ou falta de sabor. Por fora, um tremendo visual,
como está na moda. Ou então transformam-se nesses abomináveis morangos de
japonês, que são enormes, vermelhos por fora, pois verdes por dentro,
amadurecidos á força, feitos para se consumir com um adicional creme de leite,
que agora é de lata e muito sem graça.
Uma manga, pelo amor de Deus! Quem
souber de uma saborosa, cartas para esta revista.”.
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Terminando de ler, Conceição
relata que na época que leu a crônica pela primeira vez, ficou muito
impressionada pela paixão do autor com referência às mangas. A paixão descrita
de forma tão envolvente, fez com que ela comentasse com esposo e este no outro
dia, de surpresa, comprou umas mangas, que já vieram embaladas e disse que ela
mandasse para o cronista. O pacote bem embalado seguiu com um livro e um
bilhete que dizia:
“Senhor Artur da Távola,
Não fiquei insensível ao seu
apelo no sentido de que o próprio Deus resolvesse o problema de chegar uma
verdadeira MANGA às suas mãos. É o que estou fazendo, sem antes parabenizá-lo
pelo seu bom gosto e palavras coerentes com relação ao fruto quase celestial.
Desejo ao mesmo tempo
comunicar-lhe que no Universo, na América do Sul, no Brasil, existe um lugar
chamado ARACAJU onde as mangueiras sorriem para todos como uma verdadeira mãe
dadivosa e boa, espalhando sombra e frutos, perfume e cor.
Mas como tudo na vida exige uma
troca, eu tomo a liberdade de enviar-lhe um livro de poesia, de minha autoria,
acreditando que após saborear as mangas que lhe envio, a leitura do mesmo, será
mais amena e menos exigente.
Que o FAUNO ENCANTADO povoe a sua
vida de felicidade, inteligência e de oportunidade de chupar mangas sadias.
Maria da Conceição Ouro Reis”
O escritor lhe devolveu o agrado
com outro livro de sua autoria “DO AMOR - Ensaio de enigma”, editora Nova
Fronteira, com uma dedicatória: “ Para Maria da Conceição que sabe os
mistérios tanto da Lagoa do Fauno como das maravilhosas mangas do Brasil,
poesia e ecologia a serviço do belo e do bom, este ensaio do já seu amigo.
Grato, Artur da Távola”.