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domingo, 18 de novembro de 2012

Um encontro literário


          As reuniões da Academia Literária de Vida proporcionam às acadêmicas e visitantes momentos de muito prazer. Neles os assuntos são tratados com seriedade, enlevo e muita alegria, se for o caso. Vamos dar conhecimento de um desses momentos. Em uma das reuniões a professora e acadêmica Maria da Conceição Ouro Reis colocou na pauta, um recorte de revista com uma crônica do escritor Artur da Távola e depois nos contou uma estória. Vamos primeiro ao texto:

“Revista Fatos e Fotos, Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 1984 - n. 1.170 - Crs1.000,00”

Uma manga pelo amor de Deus!     

Artur da Távola

    Será pecado gostar de fruta? Parece. Nada é mais difícil hoje em dia que comer uma fruta saborosa no Rio de Janeiro. Dentre as perdas contemporâneas de vida, esta é uma que passa despercebida, ninguém reclama, há mazelas tão mais graves! Mas, para quem gosta de frutas, come-las hoje em dia é uma frustração constante. Podres, verdes, amadurecidas à força, caríssimas, elas atestam, infelizes (pois impedidas de exercer sua vocação de servir e enlevar), a queda brutal na qualidade de vida.
    Tomemos a manga. Essa suculenta, a mais afrodisíaca e tropical, bela no cheiro, na cor, farta, generosa, cheia de suco e oferenda, fruta com a qual, ao comer entra-se em relação sensual de beijo, cheiro e lambuzar, a manga ou custa quase quatro mil cruzeiros a unidade ou é verde por fora e aguada ou podre por dentro. Colhidas verdes, guardadas m caixas, apodrecem antes de amadurecer.
    Depois de quarenta anos não se pode perder a oportunidade de comer manga! A morte pode chegar e a felicidade de um homem mede-se também pela quantidade e variedade de manga que comeu em vida. Prestamos contas no céu pelas mangas que deixamos de comer, pelas quais se passou indiferente ou ficou com medo de se sujar ou restar com fiapos nos dentes. A natureza não perdoa essa atitude restritiva de não querer mergulhar no suco erótico de uma manga, morder-lhe o cangote e o imo, sugar-lhe o amoroso mel que lhe envolve a semente, oferta de amor e floral e frutal que lhe liberta o tônus e a procriação.
    A manga é como outras frutas colegas suas, uma hipersensível: ela não tolera a sociedade industrial e suas leis implacáveis-caixotes, frigoríficos, colheitas antes da hora, silagem, expedientes de mercado, que só se justificam em termos econômicos, como se fosse só economia. São frutas contestadoras. Elas negam a civilização do frigorífico. Ofendem-se, encruam, preferem morrer jovens a aviltarem-se em temperaturas feitas para conservar cadáveres bovinos, não seres vegetais e leves, suaves ofertas de maravilha e vida, sumo, odor e frutose, saúde, sais minerais, beleza, cor, odor, mel satisfação.
    Um ser assim, delicado e frio, como a manga, não se submete a geladeiras brutais, a caixotes jogados em caminhões movimentados por homens aos gritos, para, afinal, ficar exposta à poeira, manipulação, fumaceira e barulho à porta das mercearias exploradoras. Ah, ser vendida! O quanto antes isso ofende às frutas! Por natureza, são dádivas, ofertas, profusão, gratuidade, presença viva de Deus. Pobre não come nem fruta, que nasce simples, logo ali, como alguém, numa manjedoura.
   O Rio de Janeiro poderia ser coberto por mangueiras. Já foi. As mangas cairiam nas ruas. Vetustos cidadãos do Leme subiriam nas árvores para colher a melhor manga para o neto ou a filha enferma. O argumento é de que suja. Ora, se mangueira ou pitangueira suja mais que o cano de descarga dos ônibus da CTC...
    Uma tola idéia de limpeza tirou do Rio as árvores frutíferas. Ninguém pensa em repô-las, salvo o cronista, nostálgico de comer pelo menos uma manga decente, em todo este verão e, quando morrer pedir licença no céu para comer mangas no verão.
    Mas eu falava do pudor de certas frutas de serem industrializadas. É que não nasceram para isso. As mangas, morangos, o sapoti, a jabuticaba, as amoras, o abio são seres complexos, poéticos, introvertidos, tímidos. Não vieram ao mundo para serem encaixotadas desde verdes, semanas a fio, até serem consumidos. Nasceram para serem comidos no pé ou perto do momento da colheita. Rejeitam a frigorificação e o estoque. Nada têm com a sociedade de consumo. São diferentes das bananas, laranjas, abacates, peras, maças e abacaxis, estas sim, frutas com outra estrutura psicossomática, duras na queda, aptas à sociedade industrial a qual já aparecem destinadas por Deus, que lhes deu casca, conformismo e resistência. Mesmo assim, nada é mais raro que uma laranja doce, idem um abacaxi, já que pêra e maça custam-nos os olhos da cara. Resta a banana, esta santa, que já vem embrulhada pela natureza e sabe amadurecer sozinha, fora do pé.
    As frutas sensíveis, porém, são tratadas com brutalidade. E como a sociedade de consumo é visual, trata-se de fazê-las belas ou coloridas. Deixam, então, aquelas mangas enormes colorirem-se de róseo. Por dentro, podridão ou falta de sabor. Por fora, um tremendo visual, como está na moda. Ou então transformam-se nesses abomináveis morangos de japonês, que são enormes, vermelhos por fora, pois verdes por dentro, amadurecidos á força, feitos para se consumir com um adicional creme de leite, que agora é de lata e muito sem graça.
    Uma manga, pelo amor de Deus! Quem souber de uma saborosa, cartas para esta revista.”.

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   Terminando de ler, Conceição relata que na época que leu a crônica pela primeira vez, ficou muito impressionada pela paixão do autor com referência às mangas. A paixão descrita de forma tão envolvente, fez com que ela comentasse com esposo e este no outro dia, de surpresa, comprou umas mangas, que já vieram embaladas e disse que ela mandasse para o cronista. O pacote bem embalado seguiu com um livro e um bilhete que dizia:

“Senhor Artur da Távola,

    Não fiquei insensível ao seu apelo no sentido de que o próprio Deus resolvesse o problema de chegar uma verdadeira MANGA às suas mãos. É o que estou fazendo, sem antes parabenizá-lo pelo seu bom gosto e palavras coerentes com relação ao fruto quase celestial.
   Desejo ao mesmo tempo comunicar-lhe que no Universo, na América do Sul, no Brasil, existe um lugar chamado ARACAJU onde as mangueiras sorriem para todos como uma verdadeira mãe dadivosa e boa, espalhando sombra e frutos, perfume e cor.
   Mas como tudo na vida exige uma troca, eu tomo a liberdade de enviar-lhe um livro de poesia, de minha autoria, acreditando que após saborear as mangas que lhe envio, a leitura do mesmo, será mais amena e menos exigente.
   Que o FAUNO ENCANTADO povoe a sua vida de felicidade, inteligência e de oportunidade de chupar mangas sadias.

Maria da Conceição Ouro Reis”

O escritor lhe devolveu o agrado com outro livro de sua autoria “DO AMOR - Ensaio de enigma”, editora Nova Fronteira, com uma dedicatória: “ Para Maria da Conceição que sabe os mistérios tanto da Lagoa do Fauno como das maravilhosas mangas do Brasil, poesia e ecologia a serviço do belo e do bom, este ensaio do já seu amigo.

Grato, Artur da Távola”.