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segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Abre-se uma lacuna na ASL


Maria Lígia Madureira Pina

Era a manhã do dia 25 de outubro de 2009. Abri a Bíblia no cap.8 da  Carta de São Paulo aos Romanos. Lia a frase em que ele se despedia dos discípulos, dizendo: “Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé”. Neste momento, o telefone tocou. Era a colega Cléa, comunicando-me o falecimento da querida e inesquecível, mestra e acadêmica, Maria Thétis Nunes. Já esperávamos o desenlace. O presidente Anderson, já me havia preparado para o inevitável. Porém, por mais avisados que estejamos, a visita de Átropos, a Parca maldita, sempre é recebida com surpresa e desencanto. Por mais que acreditemos em outra vida a presença dela é sempre desagradável. Voltei ao texto bíblico e senti que ele se aplica muito bem à trajetória de vida da acadêmica Maria Thétis. Vejamos: criança de onze anos, vinda do interior do estado, nos anos 30, filha de mãe viúva, sem muitos recursos, chega a Aracaju. Por conselho da professora Leonor Telles de Menezes presta exame de admissão para o Atheneu, é aprovada e inicia sua brilhante corrida em busca do futuro. Faz o Ginásio e o Complementar com destaque. Vai para Salvador, presta exame na Faculdade de Filosofia da Bahia-UFBA. É aprovada. Ainda concluindo o Curso de História e Geografia, em 1945, inscreve-se para defesa de tese, concorrendo com o professor Manuel Ribeiro a cátedra de História. Era Davi, na liça contra Golias: Dr. Manuel Ribeiro, homem maduro, advogado, político, já professor da casa e Maria Thétis, uma jovem de 23 anos de idade, terminando o Curso Superior. Foi uma apoteose!... Ela costumava relembrar a torcida da juventude a seu favor, aplaudindo-a entusiasticamente.

 E acrescentava: não sei se pelo meu mérito ou pela ebulição político-social que o Brasil atravessava: a juventude inquieta aspirava por mudanças. Na liça, armas cruzadas, Thétis com a tese “A Civilização Árabe - Sua influência na Civilização Ocidental” empatou com o concorrente: notas iguais, 9,0. O professor Manuel tinha prioridade: era mais velho, casado, pai de família. Mas, os dois foram nomeados. Ela sempre, dizia que a sua nomeação foi a última da ditadura getuliana.
Começa sua carreira n magistério. Aos 28 anos de idade é nomeada diretora do Atheneu no governo e Arnaldo Garcez, mesmo ela sendo partidária da UDN. Enquanto diretora entrou novamente na liça: irrompeu um movimento anticomunista e começou o processo de caça às bruxas. Oficiais do exército chegaram ao Atheneu com o objetivo de render alunos, considerados comunistas.A jovem Diretora lançou veemente protesto: aqui, não. Dentro do Colégio os senhores não prenderão os alunos. Telefonou para o Governador que lhe deu total apoio. Mais uma vez Davi vencia Golias. Dirigiu por quatro anos o Colégio com equilíbrio e competência. Depois foi cursar o ISEB, NO Rio de Janeiro, onde fez amizade com os professores e colegas de quem falava com admiração. Entre eles Werneck Sodré e Darcy Ribeiro. Terminado o Curso permaneceu por quatro anos no Rio, como assistente da cadeira de História do professor Cândido Mendes. Foi assessora do Marechal Teixeira Lott para assuntos educacionais. Com a eleição de Jânio Quadros, insatisfeita com a reação do governo contra o ISEB, inscreveu-se para a seleção realizada pelo Ministério das Relações Exteriores. Foi selecionada e designada para atuar na Argentina, como professora de História Econômica do Brasil, na Universidade Nacional do Litoral. Lá, fez muitos amigos e até encontrou um pretendente ao matrimônio que rejeitou. Instigada pelo acadêmico Emanuel Franco disse certa vez: eu devia ter me casado com aquele argentino. Ele era tão educado e cozinhava tão bem!...
Em 1965 voltou para Sergipe. Reassumiu suas atividades pedagógicas no Atheneu e na Faculdade de Ciências Econômicas de Sergipe. Observando a decadência econômica em que se encontrava o professor sergipano, com salários baixíssimos, correndo de um colégio para outro, sem condições de se atualizar, entrou na liça e com a arma da palavra denunciou a situação humilhante em artigo publicado em jornal.
Com o advento da Universidade, as faculdades foram incorporadas e os professores, como titulares. É na UFS que Maria Thétis vai brilhar como mestra e vai nascer a escritora, a cientista política da História de Sergipe. É ela quem fala: ”certo dia, o Dr. João Cardoso, então Secretário da Educação e Cultura incubiu-me de representar Sergipe no Rio de Janeiro. Teria de falar sobre a participação de Sergipe, no processo da Independência do Brasil. Eu disse ao Secretário que não conhecia tão bem a História de Sergipe. E ele retrucou: Tem, sim. A senhora vai. Então fui pesquisar, estudar o assunto e me empolguei, a ponto de continuar a pesquisa até hoje, contribuindo com uma obra que leva conhecimento da nossa história a todos que por ela se interesse.”
Pois é. Uma publicação em série, valiosíssima: Sergipe Colonial I e II, Sergipe Provincial I e II, História de Sergipe a partir de 1820, História da Educação em Sergipe e História de Sergipe Imperial que, infelizmente já não pode autografar. Mas não importa. A sua assinatura se encontra indelével no próprio livro. Além da obra gigante escreveu biografias de sergipanos notáveis como Manuel Luiz de Azevedo com a qual foi premiada pela Academia Brasileira de Letras.
Eu disse no início da minha fala que, como São Paulo, Maria Thétis combateu o bom combate, terminou a corrida e guardou a fé. Não me refiro à fé religiosa em qualquer filiação. Não. Ela mesma se dizia agnóstica. Refiro-me a fé na vida, no trabalho, no estudo, em tudo que se propunha realizar. Fé na cidadania, na honradez, na ciência, no progresso social, na educação e na política do Brasil (apesar de tudo o que vemos e vivemos) como manifestou em entrevista ao Sintese, em janeiro de 2000. Cedo-lhe a palavra: ‘Como dialética que sou não me encontro entre os que apregoam a decadência da educação brasileira. Acredito que ela não marcha em linha reta. Há recuos e saltos. Possivelmente, no Brasil do neoliberalismo estamos vivendo uma época de recuo. Esperemos o salto. Nele, o professor e suas associações terão um papel importante. Sua luta bem estruturada é decisiva para o novo Brasil que esperamos, se encontre em gestação.”
Assim é Maria Thétis Nunes: imortal pela sua obra histórica, pelo seu exemplo de vida doada ao estudo, ao trabalho, às viagens, conhecendo povos e civilizações e ao seu ideal de um mundo melhor com oportunidade de estudo para todos, com meios de progresso individual. 
Não digo adeus a Maria Thétis porque ela permanece entre nós através da sua obra e o seu exemplo de vida, de mulher guerreira, sem dengos, nem arrufos, combatendo o bom combate com a armadura da coragem e a eficaz arma da palavra falada e escrita.

Aju/ outubro/2009.